Lourinho
Era como minha mãe chamava meu pai em vida…
Carinhoso apelido que guardei na memória dos dias…
E esse homem que vos apresento , por coincidência , tem o mesmo nome…
Foi um encontro fortuito na Barra do Gil , em Itaparica …
Fui espairecer na praia , e ao “passar pela Barraca ” Pelourinho da Ilha ” senti uma certa estranheza…
Parei em frente ao mar e ouvi uma música bela que me fez delirar…
Tomado pelo torpor da experiência , pedi uma agua de côco , mas sem sucesso .
Não havia no momento !
Simpatizei com a menina que me atendia , jovial e educada .
- Então me dá um caldo de mariscos e nós dividimos !
Falei para ela , que sorriu aquiescendo…
O Tempo é espera , de muitas experiências …
E o fogo que aquece o alimento é alquimia sublime .
Fui paciente e olhei a água transparente , as pedras da beira , os coqueiros …
O cheiro que invadiu minhas narinas era do sargaço na areia numa manhã aprazível de sábado !
Notei um vulto que se sentava na cozinha , ao lado da geladeira.
Portava grossos óculos escuros , e usava luvas .
Estava ali parado na penumbra .
Perguntou-me quem eu era , de onde vinha…
Começamos um diálogo devagarinho…
Era distinto nos modos , bem falante , disse que conhecia Seabra, Ibotirama e Palmeiras …
Se chamava , Lourival , vulgo Lourinho…
Simpatizei logo com o sujeito , por razões óbvias…
E conversamos como velhos amigos
e ele me disse que trabalhara no Derba , que conhecia aquelas bandas , construindo estradas , e que num acidente de carro , os vidros estilhaçados feriram seus olhos…
Fez várias cirurgias , mas foi perdendo a visão completamente , submergindo num mundo de sombras e véus.
O primeiro impacto foi duro , ficou deprimido .
Mas aos poucos foi descobrindo um mundo inédito , enquanto outras percepções se ampliavam !
- Eu só conheci a mim mesmo depois do acidente ! Andava muito distraído ! E encontrei Deus no escuro…
Naquele momento a conversa ganhava corpo .
Estava diante do homem e seu testemunho contundente .
Não era mais um passeio descompromissado .
Era a Odisseia que eu vislumbrava , de um viajante destemido !
Fiquei muito impressionado com seu depoimento , e lembrei de Borges , no Elogio da Sombra , quando fala da cegueira .
- Eu não me sinto cego meu caro colega . Só quando me enganam . Pois a mentira é um mal encoberto !
Recitei o Poema do Grande escritor Argentino :
” Prisioneiro de um tempo sonolento
Que não marca sua aurora nem ocaso.
É noite. Não há outros. Com o verso
Devo lavrar meu insípido universo.”
Quando termino de lê-lo Lourinho exclama :
- Esse sou eu !
É exatamente isso !
É quando surge uma nova oportunidade
De um mergulho profundo !
Eu não contive as lágrimas , guardei-as em silencio , mas meu interlocutor me pergunta :
- Porque choras meu filho ?
Sim.
Ele não é cego.
Ele enxerga através dos olhos
E vê o invisível que se esconde da matéria !
Então já adiantados nesse vôo iniciático , completou :
- No dia 24 de Agosto de 2017 a Lancha Cavalo Marinho naufragou na Baia de Todos os Santos !
Eu estava na embarcação !
Fiquei preso no convés que tombou , espremido nos corais.
Não pude respirar . Pensei que ia morrer.
Mantive a calma e me lembrei dos tempos do exército quando aprendi técnicas de sobrevivência . Encostei a cabeça no ombro , me desvencilhei dos escombros , e subi à superfície !
Tateando a água encontrei duas mochilas que boiavam e me agarrei gritando :
Eu sou cego! Eu sou cego ! Me ajudem !
Ninguém respondia .
Neste momento me lembrei de Lucas , que na Bíblia conta a História de Jesus e o cego Bartimeu , que gritava : Mestre ! Mestre ! Cura-me ! E ele enxergou !
Gritei novamente e um bote salva – vidas se aproximou . Havia nele um homem surdo que me resgatou !
Eu estava ileso por ordem e graça do Espírito Santo !
Engoli a saliva . Não queria passar vexame e chorar convulsivamente …
Então Lourinho prosseguiu :
- Na vida meu filho há que apreciar os acontecimentos de forma serena . Medir a distância antes de tomar a ação correta . Na dificuldade é a Temperança que vale . E a clareza …
Pensei quantas vezes fui afobado , desajeitado e impreciso .
E agi exaltado ! Mal pude respirar como um afogado perdido !
Mas aquele homem me dava provas da serenidade conquistada as custas de desafios enormes .
Então chegava a hora da partida , quando um permanece aonde está , e o outro regressa pela saida…
Que ficou entreaberta como uma janela , que se abria…
E dessa pequena fresta eu vislumbro um Universo desconhecido , que na escuridão galáctica se ilumina !
Eu sinto os sois e os astros e as passagens que encontro me levam a Lourinho…
E a confiança me invade como uma onda magnética que me impulsiona para frente…
E aquilo que era medo se transforma em coragem e a certeza que estabelece a Verdade , de que não estamos sozinhos…
Apenas ignoramos a Natureza Divina e a Força interior que nos habita , como é a história deste homem Visionário aparentemente cego…
Que me mostra o caminho com seu Cajado
Tateando o mundo num suspiro !
muito bom o relato, uma história fantástica, e a sensibilidade do poeta