domingo, 22 dezembro, 2024

Você é a favor ou contra?

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Você é a favor ou contra?

Hoje vou começar o texto contando uma pequena história:

Era uma vez um pequeno povoado localizado entre montanhas e por conta de sua localização tinha as paisagens mais bonitas da região, porém seu acesso era muito difícil. Nele moravam algumas famílias praticamente isoladas. A escassez econômica era grande. Comia-se o que se plantava e o excedente era vendido em feiras de cidades vizinhas, para as quais eram necessárias horas de viagem em cima de animais de carga ou a pé. O trabalho era pesado e ensinado desde criança. Apesar da situação difícil era um povo muito acolhedor, gente alegre e criativa. Conseguia fazer d’uma jaca uma moqueca e d´uma banana verde um almoço! Luxo era cream cracker no café da manhã. Poucos tinham isso. Com o passar dos anos alguns forasteiros começaram a aparecer na localidade e se encantaram com aquela gente e aquele lugar. As pessoas que vinham de fora trouxeram outros conhecimentos e tecnologias, que somados aos saberes já existentes na comunidade foram capazes de criar muita coisa boa. Foram chegando os primeiros carros, uma escola, posto de saúde… Quem foi chegando foi sendo tão bem acolhido que com o passar dos anos passou a se sentir parte do lugar e a querer cuidar tanto quanto aqueles que ali nasciam. Mas uma coisa fundamental os diferenciava: os que chegavam fugiam daquilo que os dali buscavam.

A primeira vez que vim no Capão eu tinha 5 anos de idade e a vila era o único lugar com eletricidade. Voltei para Salvador com o rosto queimado de nódoa de manga de tanto que comi a fruta que era abundante no Vale. Depois disso voltei dezenas de vezes. Aqui eu podia sair sozinha à noite, me aventurar nas trilhas e cachoeiras com as crianças ou adolescentes da minha idade. Todo mundo sabia que não tinha perigo. Para me comunicar com minha mãe, apenas um posto da Telemar estava disponível para toda a comunidade. Não tinha telefone público nem telefone fixo, muito menos internet. Quando chegava a hora de voltar pra Salvador era uma confusão achar um carro que me levasse até Palmeiras. Não tinha transporte regular e a carona incerta era, muitas vezes, a única solução. Para mim, que vinha umas 4 vezes ao ano, era uma delícia! Estar fora do mundo, sem os perigos da cidade, com uma natureza abundante e uma comunidade sempre pronta para acolher. Para quem morava acho que era meio difícil. Pouco trabalho, sem escola de ensino médio, sem transporte regular, sem hospital.

A chegada da luz, e em seguida da televisão, do telefone, e, por fim, da internet, provocaram mudanças radicais na comunidade. Com a internet o Vale do Capão entrou de vez para o mapa dos destinos turísticos da Bahia. Agora estava fácil achar informações sobre o lugar, reservar pousadas, agências. Por outro lado, a população local, que vinha de um histórico de escassez, começou a ver no turismo uma fonte de renda. Abriram-se pousadas, restaurantes, lanchonetes, agências. A internet mudou também o perfil das pessoas que vinham morar na comunidade. Agora não eram mais apenas os “forasteiros” de outrora, que fugiam do modelo de sociedade vivenciado nas cidades e fundavam aqui suas comunidades alternativas. Com a internet, vieram se instalar pessoas como eu, jovens ainda inseridos no mercado de trabalho, que conectados com o mundo através do seu laptop podiam se dar ao luxo de viver perto da natureza. Claro que o que conto aqui é uma história muito resumida. O objetivo não é fazer um levantamento histórico e cronológico bem detalhado, mas entender como o desenvolvimento econômico vivenciado no Vale do Capão, associado às diferentes formas de ocupação que se sucederam no Vale, nos trouxeram onde estamos hoje: Asfaltar ou não a estrada de acesso ao Capão?

A questão da estrada, anunciada pelo governador Rui Costa no último dia 3 de julho, é uma discussão antiga na comunidade. Ao contrário do que o jornal Correio da Bahia insinua na sua postagem, não acredito que seja uma simples oposição entre moradores que querem as comodidades de uma estrada e alguns conservadores que temem o aumento da atividade turística. Os moradores que se opõem à estrada denunciam há anos a falta de infraestrutura do Capão para receber cada vez mais turistas e moradores. Aqui não tem saneamento básico. Isso quer dizer que quando você utiliza o banheiro de um restaurante ou pousada na vila, seus dejetos ficam ali, armazenados numa fossa (quase sempre) séptica projetada para uma residência (e não um comércio), localizada a alguns metros do rio que atravessa toda a comunidade. Isso quer dizer também que todo o lixo gerado por nós moradores e pelos visitantes vai parar num lixão a céu aberto localizado em Palmeiras, próximo a casas populares. Aqui não tem um sistema público de abastecimento de água. Isso quer dizer que em 2014 eram mais de 200 poços residenciais perfurados. Isso quer dizer também que as localidades que captam de nascentes ficam sem água em períodos prolongados de estiagem.

Por outro lado, quem já precisou sair do Capão numa emergência de saúde ou em trabalho de parto, por exemplo, sabe da necessidade de uma estrada melhor. Quem trabalha com transporte ou precisa sair do Capão a trabalho de forma recorrente não aguenta mais a estrada como está. O trecho que liga o Capão a Palmeiras, sede do município, tem pouco mais de 20 km de extensão e é feito em uma média de 1h quando a estrada não está muito ruim. Isso representa perda de tempo, perda de dinheiro, risco de vida em casos de emergências de saúde, risco de acidentes, dentre outros. Por isso, sim, boa parte da comunidade, principalmente os nativos, que já faziam esse trajeto a pé quando nem estrada tinha, é a favor de uma estrada asfaltada. O asfalto é visto aqui como uma solução para um problema que não aguentamos mais.

A pergunta que eu me faço, e acredito que muitos de vocês também, é se o asfalto é a melhor solução.

Eu acredito que antes de nos lançarmos em mais uma disputa de quem é contra ou a favor é interessante pensarmos nos pontos que nos fazem convergir. Ao ler a petição que foi lançada por uma moradora, e já assinada por mais de 1795 pessoas contra a estrada de asfalto, entende-se que todos nós somos a favor de uma estrada boa, porém o problema é o material escolhido pelo governo. A petição sinaliza o que alguns estudos já mostraram: o asfalto impermeabiliza o solo, causando mais erosão, além de ser nocivo aos animais silvestres. Ora, todos nós sabemos que o Capão tem a particularidade de ser vizinho ao Parque Nacional e a estrada ser atravessada por diversos cursos d´água provenientes de nascentes e minas d’água em época de chuva. Ou seja, se o meio ambiente é o grande mote do “progresso” e da geração de renda da população local, não pode ser negligenciado numa obra de infraestrutura tão importante.

O outro aspecto diz respeito à gestão. Quem é a favor da estrada de asfalto sabe como, por quem e com que periodicidade será feita a manutenção? Transitar por uma estrada de terra cheia de buracos é ruim, mas você já tentou fazer o mesmo numa estrada de asfalto? Os riscos de acidentes e prejuízos ao carro são muito maiores. Durante anos tivemos o exemplo da via que liga Palmeiras ao entroncamento com a BR-242. Eram 8km de buracos com alguns trechos de asfalto, cuja travessia podia durar até 30 minutos. Hoje esse trecho está novo em folha. Não por uma iniciativa da gestão municipal, que remendou o asfalto durante anos, mas graças a uma obra do governo do estado. Porém, assim como a estrada que liga Palmeiras ao Capão, resta a dúvida de quem fará a manutenção. Se ficar a cargo da prefeitura já tenho minhas suspeitas de como isso pode acabar. Fora a manutenção, tem a questão da obra propriamente dita. Peguemos como exemplo a obra da ponte, localizada neste mesmo trecho. Antes havia uma linda ponte de madeira, da qual podíamos ver o rio ao atravessarmos, porém ela estava seriamente comprometida e precisava ser refeita. Em seu lugar foi feita uma ponte horrorosa, sem nenhuma visibilidade da paisagem e com cara de que nunca foi acabada. Ao seu lado uma placa indicando que sua construção custou pouco mais de 1 milhão de reais. Informação que ninguém entende muito vendo o resultado da obra.

Pouco mais de um milhão e seiscentos mil reais foi também o valor destinado à prefeitura para a pavimentação da estrada Palmeiras/Capão. A informação foi publicada em diário oficial na data de 24 de abril de 2020: “OBJETO: A Pavimentação em Paralelepípedo e Revestimento Primário no trecho: Palmeiras – Caeté-Açu, com extensão total de 21,00 km. VALOR: R$1.623.023,48”. Desde o ano passado, nós moradores assistimos a carretas e mais carretas de terra sendo jogadas na estrada sem visualizar nenhuma melhoria, a não ser algumas manilhas que foram instaladas para drenagem e a pavimentação em paralelepípedo feita nos 2km que unem a vila aos Campos. O que eu não entendo é como a construção de uma ponte pode ter o mesmo valor que uma estrada inteira? E se já tivemos esse valor para pavimentação em 2020 porque agora temos o anúncio de mais recursos para uma estrada dessa vez asfaltada.

Se tem uma coisa que a Lava Jato serviu, além de prender injustamente o ex-presidente Lula, foi para mostrar para a população como funciona os esquemas entre as empreiteiras que ganham grandes licitações de obras e o poder público. Não estou aqui fazendo nenhuma acusação leviana, mas se queremos uma estrada boa para a população do Capão, temos que parar de perder tempo discutindo quem é a favor ou contra e nos concentrarmos na estrada que queremos! Tão antigo quanto a discussão sobre a estrada é o projeto de Estrada Parque feito por moradores e representantes de coletivos e associações locais há alguns anos. É essa mesma Estrada Parque que é defendida pela petição citada acima. Uma estrada que seja adaptada às necessidades ambientais, sociais e turísticas, visto que prevê espaços para paradas, contemplação da paisagem, drenagem, etc. Se a necessidade de melhoria definitiva da estrada é o ponto onde todos nós concordamos, por que a questão é apresentada e vivenciada de forma polarizada?

A estratégia do governo é sagaz: a estrada será asfaltada ou não será. Dessa forma, quem quer a qualquer custo uma estrada melhor irá apoiar a decisão governamental e quem ainda acha que essa não é a melhor solução será apresentado como opositor ao projeto. Assim, a questão deixa de ser entre população e governo em busca de uma melhor solução e passa a ser uma disputa dentro da própria comunidade. E aí, depois desse “textão” você ainda acha que o problema sou eu que sou a favor de uma estrada de qualidade, que permita a nós moradores nos deslocarmos com mais facilidade, mas não de asfalto, ou do governo que, por meio de um projeto desenvolvimentista e em nome de um progresso fadado ao fracasso, quer nos impor um tipo de estrada que nos trará mais danos que benefícios?

Melissa Zonzon
Melissa Zonzon
Formada em Antropologia, mestre em Gestão Social pela faculdade de Administração-UFBA. Frequentadora do Vale do Capão desde 1992. Residente desde 2012. Trabalha com gestão de projetos culturais e socioambientais no Território da Chapada Diamantina desde 2012. Fundadora da associação Colmeia, sócia diretora da Araçá Cultura e Meio Ambiente.
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5 COMENTÁRIOS

  1. Sou totalmente contra o asfalto. Por tudo que já foi dito, prefiro a natureza, a tranquilidade. Ainda podemos segurar os desastres que o asfalto vai gerar.

  2. Excelente texto. Todos queremos melhorias responsáveis e sustentáveis na medida do possível. Acesso fácil significa mais gente. Mais gente mais problemas. SE O GOVERNO ESTIVESSE PREOCUPADO EM MELHORAR A VIDA DAS PESSOAS E DOS VISITANTES, PRIMEIRO FARIA O BÁSICO. AQUI NO CAPÃO NAO TEMOS NEM O BÁSICO. Muita gente vai ganhar dinheiro pra fazer essa estrada. Se fizerem… Empreiteiras, políticos, imobiliárias, etc. O dinheiro e aganância não estão preocupados com a conservação e proteção do nosso maior bem…A NATUREZA. Sou totalmente contra a pavimentação asfáltica e a favor das melhorias.

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