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    Esse ano não vai ter Cariru!

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    Esse ano não vai ter Cariru!

    Mês de setembro sempre foi aguardado aqui no Vale do Capão, aliás, acho que em toda Bahia. Setembro é mês de Cosme Damião ou dos Ibejis, e como manda a tradição, Carurus são ofertados aos familiares, amigos e vizinhos. Não conheço a fundo a origem destes festejos, que para cada tradição, católica, candomblé ou umbanda, é perpassada por diferentes simbolismos e significados. Mas o fato é que essa é uma festa da fartura, da oferta de alimentos e da brincadeira.

    Aqui no Vale do Capão uma dezena de famílias oferece o Cariru. Sim, aqui não é caruru, é cariru mesmo, podendo ser também Cariru de doce, que é quando as rezas são acompanhadas apenas de doces ofertados àqueles que chegam. Durante alguns dias, famílias oferecem no horário do almoço um verdadeiro banquete. A comunidade inteira participa, desde os mais chegados que se envolvem no preparo das comidas e nas rezas, até os moradores e turistas de passagem pelo Vale. Os primeiros a serem servidos são os 7 meninos, que sentados no chão ouvem as rezas e cantigas dos santos Cosme e Damião. Em algumas casas, o ritual é conduzido pelos toques do tambor, heranças da matriz africana já bastante fragilizadas pelas bandas de cá.

    Outra especificidade do Cariru de cá é que ele não leva as comidas a base de dendê nem quiabo como o caruru tradicional da culinária de matriz africana. O Cariru é composto pelos alimentos do cotidiano. Arroz, feijão, verduras, carne, frango, macarrão, que nesta data são feitos em grande quantidade. Sobre esse assunto, já ouvi algumas pessoas dizerem que a ausência do dendê no Cariru é um traço do processo de embranquecimento pelo qual esses rituais passaram ao longo dos anos, notadamente no interior, onde as tradições e práticas de origem africana foram ainda mais desvalorizadas e apagadas. Para entender um pouco melhor esse costume fui conversar com Dona Lurdinha, nativa do Vale do Capão que há 40 anos faz o cariru de Cosme e Damião.

    Dona Lurdinha contou que antes de “fazer o Cosme” na casa dela ela ajudava outras senhoras que já faziam o festejo. Teria sido dona Chiquinha, esposa de Rufino Rocha, uma das primeiras a reverenciar os santos aqui na comunidade. Quando teve gêmeos, dona Lurdinha começou a fazer o Cosme, como chamam por aqui, mas só depois de 3 anos, que é como manda a tradição. Ela me contou também que o Cariru nunca levou dendê, mas que de um tempo pra cá, com a chegada de muitas pessoas de Salvador, algumas pessoas começaram a acrescentar ao cardápio o caruru e o vatapá, mas que esses ingredientes estão longe de serem os grandes protagonistas do banquete. Por falar na comida, acho que é importante contar que são dias de preparo, aliás, para dona Lurdinha o preparo começa meses antes, quando ela semeia boa parte das verduras que vão compor o almoço ofertado.

    Cosme e Damião é um dos festejos mais importantes da comunidade, aguardado ansiosamente por muitos que vivenciam este ritual como uma forma de atualizar a tradição, reafirmar sua fé, reforçar os laços comunitários ou simplesmente ter um dia livre da tarefa de cozinhar e encontrar os amigos! Nos dias de festejo, os restaurantes não abrem e filas se formam nas portas das casas que “fazem o Cosme”. Depois do almoço tem a distribuição dos doces. Pacotes de balas, chicletes, jujubas e pirulitos são jogados no ar e adultos e crianças disputam os doces numa brincadeira gostosa. À tardinha tem a reza, momento mais sagrado do ritual, momento em que as mulheres se reúnem em torno dos santos e entoam as cantigas e orações ensinadas de geração em geração.

    Cosme e Damião é aglomeração. Dona Lurdinha conta que a cada ano aumenta a quantidade de pratos servidos, no último ano foram mais de 100. Com a questão da pandemia fui perguntar para Dona Lurdinha como ficaria o Cosme esse ano. Ela me contou com muita tranquilidade e sabedoria que não vai fazer o almoço ofertado à comunidade: “Vou montar o altar, acender a vela e fazer as rezas para os santos, eles vão entender que esse ano está diferente e não é culpa de ninguém, o que não podemos é colocar a vida das pessoas em risco”. Ao contrário de mim, que estava sentida por não termos essa festa tão bonita esse ano, dona Lurdinha acrescentou: “A gente tem que aceitar as coisas com tranquilidade, essa é a nossa realidade agora, quando melhorar essa situação a gente faz, os santos vão entender”.

    Acho bonita essa forma de encarar as coisas da vida. Essa sabedoria de entender que tudo tem sua hora e seu lugar. Com dona Lurdinha não tem ansiedade e frustração, pelo menos não com relação ao Cosme. Ela também não está tentando adequar o ritual a um possível “novo normal” distribuindo a comida em quentinhas, por exemplo. O importante do ritual é a devoção aos santos e isso está garantido com o altar, as velas e as rezas no dia 27 de setembro.

    Este ano não vai ter Cariru no Capão, que ainda está fechado para visitação, pois para a comunidade é mais importante preservar a população local do que realizar seus festejos tradicionais, mas a devoção aos santos gêmeos permanece em cada altar e vela acesa.

    Melissa Zonzon
    Melissa Zonzon
    Formada em Antropologia, mestre em Gestão Social pela faculdade de Administração-UFBA. Frequentadora do Vale do Capão desde 1992. Residente desde 2012. Trabalha com gestão de projetos culturais e socioambientais no Território da Chapada Diamantina desde 2012. Fundadora da associação Colmeia, sócia diretora da Araçá Cultura e Meio Ambiente.
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